segunda-feira, fevereiro 19

O arroz de favas do Jacinto...

Uma formidável moça, de enormes peitos que lhe tremiam dentro das ramagens do lenço cruzado, ainda suada e esbraseada do calor da lareira, entrou esmagando o soalho, com uma terrina a fumegar. E o Melchior, que seguia erguendo a infusa do vinho, esperava que Suas Incelências lhe perdoassem porque faltara tempo para o caldinho apurar… Jacinto ocupou a sede ancestral – e durante momentos (de esgazeada ansiedade para o caseiro excelente) esfregou energicamente, com a ponta da toalha, o garfo negro, a fusca colher de estanho. Depois, desconfiado, provou o caldo, que era de galinha e rescendia. Provou – e levantou para mim, seu camarada de misérias, uns olhos que brilharam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu, com espanto: - Está bom!

Foi ele que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija moça de peitos trementes, que enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado – e pousou sobre a mesa uma travessa a transbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominara favas!... Tentou todavia uma garfada tímida – e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara, luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado:
- Óptimo! … Ah, destas favas, sim! Oh que fava! Que delícia!
E por esta santa gula louvava a serra, a arte perfeita das mulheres palreiras que em baixo remexiam as panelas, o Melchior que presidia ao bródio…
- Deste arroz com fava nem em Paris, Melchior amigo!

O homem óptimo sorria, inteiramente desanuviado:
- Pois é cá a comidinha dos moços da quinta! E cada pratada, que até Suas Incelências se riam… Mas agora aqui, o sr. D. Jacinto, também vai engordar e enrijar!
O bom caseiro sinceramente cria que, perdido nesses remotos Parises, o senhor de Tormes, longe da fartura de Tormes, padecia fome e mingava… E o meu Príncipe, na verdade parecia saciar uma velhíssima fome e uma longa saudade da abundância, rompendo assim, a cada travessa, em louvores mais copiosos. Diante do louro frango assado no espeto e da salada que ele apetecera na horta, agora temperada com um azeite da serra digno dos lábios de Platão, terminou por bradar: - É divino! – Mas nada o entusiasmava como o vinho de Tormes, caindo de alto, da bojuda infusa verde – um vinho fresco, espero, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo. Mirando, à vela de sebo, o copo grosso que ele orlava de leve espuma rósea, o meu Príncipe, com um resplendor de optimismo na face, citou Virgílio:
- Quo te carmina dicam, Rethica? Quem dignamente te cantará, vinho amável destas serras?
A cidade e as serras, Eça de Queirós

2 comentários:

Anónimo disse...

Gostei tanto de ler a cidade e as serras, os livros do eça até deixam água na boca.Os livros do Eça são sempre ricos em comida!:)

A Bruxa das PAPs disse...

Que bom encontrar alguém que ainda gosta do velho Eça!